Mesmo antes do Podcast

Ainda nos preâmbulos da produção do podcast (vamos ver se alguma coisa é desenvolvida neste fim-de-semana), deparei com o artigo abaixo... Juro! Uma das melhores e mais sucintas análises que eu já li...

Vlado, democracia, PT, economia...
Marco Antonio Rocha - jornalista
(O Estado de São Paulo - 03-out-2005)

Há exatos 30 anos, neste mês que se inicia, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado numa masmorra digna da Idade Média, instalada pela ditadura militar aqui, em São Paulo, na esquina das Ruas Thomás Carvalhal e Tutóia. Naquele antro de barbárie, uma súcia de vagabundos, desempregados, ferrabrases de subúrbio e indisfarçáveis facínoras, estipendiados pelas contribuições de empresários fascistas à sinistra Operação Bandeirantes (Oban), havia sido cooptada para o trabalho macabro de torturar cidadãos brasileiros e arrancar deles não o que porventura tivessem para dizer, mas sim o que os chefes do bando queriam que dissessem.
A tarefa transcorria impune, sob o olhar cúmplice de alguns psicopatas que, na época, travajam - deploravelmente para a gloriosa História das nossas Forças Armadas - elegantes fardas de oficiais - majores e capitães. Seus superiores haviam decidido que aquela era a melhor estratégia para blindar o Brasil contra o comunismo internacional (já em plena decadência então).
No dia 25 de outubro de 1975, um sábado, Herzog tombou vítima da estupidez ideológica herdada da guerra fria, já velhusca, mas exarcebada sete anos antes no Brasil, em 13 de dezembro de 1968, pelo Ato Institucional nº 5, que uma chusma de servis-civis nos cargos de ministros de Estado assinara.
Vlado tombou, sim, mas acendeu uma vasta onda de indignação popular. O profundo silêncio de milhares de pessoas que ocorreram ao culto ecumênico na Catedral da Sé teve a eloqüência de um ensurdecedor grito de "BASTA!", que até hoje ecoa nos ouvidos de quem viveu aqueles momentos.
Os cães de guarda do fascismo de então não atinaram com o que haviam desencadeado, pois, apenas três meses depois matavam a pancadas, no mesmo local, sob o mesmo pretexto, o operário Manoel Fiel Filho e - requinte da brutalidade - soltavam para a opinião pública a mesma cínica explicação de que ele havia se suicidado.
Fiel e Vlado partiram "num rabo de foguete", deixando para trás o pranto de "Marias e Clarices", como Aldyr Blanc resumiu na sua alegoria musical daquele momento traumático da vida brasileira e que, ainda hoje, a voz potente de Elis Regina privilegia em inúmeros programas de rádio e TV. Mas ambos deixaram também para trás o grito que desaguaria, dez anos mais tarde, não sem muitos novos tropeços e dificuldades, na democracia que temos hoje.
E essa democracia que temos hoje é, sem dúvida, em boa parte e medida, obra também do Partido dos Trabalhadores - o PT. Não exclusiva, como proclamou uma equivocada professora. Quando Vlado e Fiel morreram, o pT não existia. Quando, antes deles, muitos outros brasileiros morreram, por terem aderido em desespero de causa e equivocadamente à luta armada; quando Fernando Gabeira e Zé Dirceu se exilaram do Brasil; quando Ulysses Guimarães e Teotônio Vilella pregavam a redemocratização pelo Brasil inteiro - o PT não existia.
Mas, cinco anos depois, a partir de 1980, teve, sim, grande e importante participação na redemocratização, até por servir de canal democrático legal para que ex-guerrilheiros escoassem suas vocações políticas.E continua a ter, por sua pregação, por sua programação, por muitos dos seus dedicados militantes. Nenhuma democracia pode merecer esse nome se nela não há um ou mais partidos políticos dedicados à defesa e promoção das causas do povo, das causas que num sentido geral são chamadas "de esquerda" e que, inegavelmente, são de elevado espírito humanístico.
A grande desgraça ideológico trazida pelo chamado comunismo real - na prática, o de Stalin - foi a de ter-se apropriado do "esquerdismo" em escala mundial. A postulação "esquerdista" em política existe desde a Grécia clássica e consiste basicamente em contrapor os pleitos e anseios da grande massa da população ao conforto e ao comodismo dos seus segmentos dirigentes; mas passou a ser confundida, principalmente após a 2ª Guerra Mundial e por influência da política das grandes potências, com o comunismo soviético, pura e simplesmente. E isso dos dois lados, à esquerda e à direita.
O PT herdou essa confusão. Grande parte de seus militantes adere ideologicamente ao comunismo na presunção de que a missão "da esquerda" é a de destruir o capitalismo, equívoco incutido nas "esquerdas" mundiais pela União Soviética, cujo objetivo prático imediato, como potência militar, era destruir, ou pelo menos neutralizar, o que a ameaçava, ou seja, a outra potência militar, os EUA.
Mas a implementação das bandeiras de "esquerda" não exige a destruição do capitalismo e, certamente, não impõe a implantação de uma coisa que nunca existiu - o "comunismo". A ilusão de tentar fazer isso, pela força, quando se a tem, resultou em ditadura brutal e em União Soviética, na China e, hoje, em Cuba.
A crença de que o "esquerdismo" exige uma economia "de esquerda", além de se constituir numa charada indecifrável, é também uma armadilha onde inúmeros esquerdistas honrados e honestos se metem. Os esforços que dependem para inventar essa nova economia, ou para tentar pô-la em execução quando estão no poder, são comoventes... e sempre fracassados, pois não há uma maneira capitalista, ou uma maneira socialista, ou uma maneira comunista de conduzir a economia. Só há uma maneira, a maneira econômica - que depende da competência dos condutores e da chamada conjuntura dos mercados (e sempre dessas duas coisas!) para melhorar, ou não, a vida das grandes massas. O resto é ilusão de noiva, ou "doença infantil", diria Lenin.
Quando um esquerdista, do PT ou de qualquer partido, se envolve no debate sobre como deve ser a economia, perde o tempo e a discussão. O esquerdismo não é uma proposta para a economia, é uma batalha pela dignidade humana. Muito maior, portanto. E o que o esquerdista tem a fazer é vigiar para que os condutores da economia ajam com honradez e competência, dentro das regras que a presidem. Quando se propõem a "mudar tudo o que está aí", como freqüentemente fazem, não mudam nada ou mudam para pior.
No PT esse equívoco teve consequências danosas. Enquanto sua militância se distraía na luta contra o FMI, contra a Alca, contra o neoliberalismo, contra o Consenso de Washington, contra o latifúndio, contra a política econômica do Palocci e outros moinhos de vento econômicos, os donos da legenda batalhavam sorrateiramente em benefício de si próprios e da ampliação de seu poder pessoal - produzindo um descomunal estrago na grande batalha pela dignidade humana.

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